Caso de botequim

                    - Me dá um cafezinho, seu Zé?
                    - Péra um tiquim que tá passano agora...
                     Aproveitei pra dar uma olhada em volta. No canto da parede, encostada parte numa mesa, parte na própria parede, uma mulher gorda dormia com a boca aberta e com moscas voando ao redor de sua cabeça. Um cachorro velho e esquelético roia uma pedra logo na entrada do botequim. Um homem, já bêbado naquele horário, entra e se dirige ao balcão. Procura por seu Zé e não o encontra. Olha pra mim durante um bom tempo.
                    -Bom dia, amigo!
                    -Bom dia! - eu respondo.
                    -Posso fazê uma preguntinha pro sinhô?
                    -Fique à vontade.
                    -Seu Zé... morreu?
                    Confesso que me assustei um pouco com essa pergunta. Olhei bem pro bêbado e brinquei:
                    -É triste, não? Ele vai fazer muita fala.
                    O bêbado, meio atordoado, cambaleou em direção à mulher gorda e se sentou à mesa com ela. Baixou a cabeça e começou a chorar copiosamente. Eu já ia dizer ao meu companheiro embriagado que estava apenas brincando com ele, mas seu Zé foi mais rápido.
                    -Óia aqui seu cafezim!
                    O bebum ergueu a cabeça e olhou arregalado pra seu Zé. Gritou um "vixe" e caiu no chão. Entrei em desespero. Teria morrido?
                    -Matei o coitado!
                    -Que foi que teve aí, seu home?
                    -Ele tava pensando que o senhor tinha morrido, seu Zé!
                    -Nossinhora, e quem morreu foi o home!
                    Foi nisso que o bêbado abriu os olhos. Olhou bem devagar para tudo e se levantou com dificuldade.
                    -Seu Antônio, eu pensei que tu tinha batido as bota.
                    -Seu Zé, o sinhô num morreu?
                    Os dois se abraçaram. Seu Zé ofereceu uma dose de cachaça pra seu Antônio, "-Mas só uma, viu?".
                    Quando saí do botequim a gorda continuava dormindo com a boca aberta, os dois homens saboreavam um prato de calabresa com cachaça e pimenta e o cão roia a pedra ainda, só um pouco mais à frente.

Minha Morte

 Hoje é o dia de minha morte

É o dia de júbilo absoluto

Vou por meus amigos de luto

E a invejar minha boa sorte


Vou ver Pedro, João, Jesus

Vou ver Deus, vou ver Maria

Finalmente chega o dia

Em que sinto alguma luz


Vou morrer, mas já te digo

Não derrames uma lágrima

Se tu fores meu amigo


E tu, que foras inimigo

Rogo aos Santos e à Fátima

Para que morras comigo

Escaladas

 Os acordes menores

Fluem pra dentro de mim

E, de repente

Após uma sétima preparatória

Desperto para a alegria

De uma escala natural maior

Voltando rapidamente

Meus dedos às nonas

De uma escala

De tristeza

E solidão

Eco

Ecoa o eco perto

E longe soa o sono

Fundo

Profundamente perturbado

A minha mente mente

Pra mim, assim

Sem dó, e o pó

E o pó que é neve

Desce dos dedos

De nuvens e somos

Donos do mundo

Por um instante

Distante, longínquo

E o eco ecoa perto

Perto    perto

Perto    perto


Que dá medo de cegar

Que dá medo de morrer

Que dá medo de matar

Que dá medo de sofrer

Marafogado

E as águas se fecham sobre mim.

Eu, pobre amarrado,

Vou-me afogando.


E os cortes que tu me fizeste,

Eu, sob o mar salgado,

Agonizando.

Tentativa

"Já imaginou, numa noite de luar,

um lago, uma pétala caindo?" 


Que teu vento sopre as velas de meu barco

E tua boca sussurre meu nome ao vento

Que se extinga, de uma vez, meu brilho opaco

Que eu emita o meu último lamento


Que teu sorriso ilumine meus horrores

Que tua voz acalente o meu pranto

Que o teu cheiro, que emprestaste às flores

Cubra meu corpo como um terno manto


E então os anjos ao meu lado

Cantarão uma sublime serenata